
A música ritual do candomblé, tanto em cerimônias públicas quanto privadas, ultrapassa o valor meramente estético, ou mesmo de elemento propiciador à atmosfera religiosa, para exercer a função de elemento constitutivo em todas as instâncias do culto. Além disso, ela tem funções de ordenação bastante claras, sendo também um dos elementos através dos quais as identidades dos adeptos e dos terreiros e "nações" são construídas e se expressam.
Não é sem motivo, como registra Nina Rodrigues em 1932, que os jornais do final do século passado pediam providências contra a atuação dos terreiros, chamando a atenção para os "estrondosos ruídos dos atabaques e dos chocalhos" e à "vozearia dos devotos" que perturbavam o "sossego" e o "silêncio público" com "vergonhosos espetáculos". O que demonstra a importância da percepção sonora pelos "de fora" na construção da imagem do candomblé. Percepção desagradável ou não conforme o contexto social e cultural mais amplo onde ela se dá. Assim, aos tempos de perseguição religiosa, quando a música do candomblé era tida como "estrondosos ruídos", seguiu-se um tempo de tolerância e um de valorização da musicalidade de origem africana em geral (jazz, blues, reggae, samba, gospell, spirituals) que, num processo dialético, contribuiu para a melhor compreensão tanto do candomblé quanto de sua estética musical.
Para os "de dentro", a música do candomblé não se prende tanto a um julgamento estético, na medida em que é uma linguagem, onde o que importa é o sentido que o som adquire enquanto emanação do sagrado. Assim, até mesmo o "ruído" dos búzios, chocalhando entre as mãos do pai-de-santo, pode ser entendido como a fala do deus da adivinhação que "escreverá" na peneira, com os búzios, as respostas às dúvidas do homem. Ou mesmo os rojões das "Fogueiras de Xangô" que refazem no céu o som do deus-trovão.
É claro que as religiões em geral têm a música como importante elemento de contato com o sagrado, seja no caso em que ela proporciona o contato mais íntimo com o eu, como é o caso dos mantras das religiões orientais, seja no caso em que sua função é a de integrar os indivíduos numa "única voz", como é o caso das religiões pentecostais, entre outras, em que os fiéis cantam em uníssono os hinos de louvação. O candomblé, entretanto, parece reunir estas duas dimensões: a do contato com o eu, através das divindades pessoais, e a do contato com o outro, estabelecidas musicalmente. Mas, ao contrário de outras religiões, no candomblé a música não é um momento entre os demais. Todos os momentos rituais são, em essência, musicais. Assim, para que os deuses estejam entre os homens ou para que estes ascendam aos deuses é preciso cantar; cantar para subir.
Este trabalho foi apresentado pela primeira vez em 1988, nos Seminários de Etnomusicologia, coordenados por Tiago Oliveira Pinto e Max B, no PPGAS/USP e publicado em 1992 na revista RELIGIÃO & SOCIEDADE n.16/2, ISER, Rio de Janeiro


“Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/rainha de todos os pássaros.
Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
- Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia.
- De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
- Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração fará um dia voar às alturas.
- Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como a águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não á terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, cicscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
- Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando no chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à carga:
- Eu lhe havia dito, ela virou galiha!
- Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levantaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não a terra abra suas asas e voe!
A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e a vastidão do horizonte.
Neste momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, e voar para o alto, a voar cada vez mais alto. Voou... voou... até confundir-se com o azul do firmamento...”
E Aggrey terminou conclamando:
- Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, companheiros e companheiras, abramos as asas e voemos. Voemos como as águias. Jamais nos contentemos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar.

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